Infelizmente a nossa curta visão não permite avistar um germe do mal naqueles que são chamados de bons, e um germe de bem, naqueles que são chamados de maus.
(Francesco Carnelutti, As misérias do processo penal, 1957)
A passagem de Carnelutti data da metade do século passado e, no entanto, ainda serve como chave de leitura às situações do nosso cotidiano. Não erro em dizer que ela tem especial pertinência quando tentamos compreender o atual estado de coisas do nosso sistema de justiça criminal. São dados já conhecidos, mas não custa repetir: com mais de 760 mil internos[1], temos a terceira população carcerária do mundo. Chama muito a atenção o fato de que deste total, cerca de um terço (248.929 pessoas) seja de presos provisórios, além dos 347.661 internos ao sistema que cumprem suas penas em regime fechado. Condenamos e prendemos mais do que o nosso sistema é capaz de absorver, o que deu ocasião a um deficit de mais de 300 mil vagas. Além do mais, a informação de que 42,92% dos internos foram condenados/preventivamente presos em razão de crimes contra o patrimônio, seguidos de 29,24% de condenados/preventivamente presos relacionados às drogas torna possível ver o que não está dito: que esse amontoado de gente deve-se ao maior grau de criminalização atribuído a determinadas condutas quando as comparamos com outras. Crimes contra o patrimônio e relativos às drogas são os responsáveis por alimentar a lógica do pânico moral[2] e, como consequência, servem a gerar o clamor social contra a impunidade. O combate à impunidade, por sua vez, produz pressão sobre aqueles que investigam, acusam e julgam. Neste cenário, a idoneidade do agente policial – a presunção de veracidade de tudo o que por ele é relatado – é premissa quase obrigatória para o alcance dos resultados almejados. Já a palavra do réu, a menos que seja réu confesso, pouco é levada em consideração pelos juízes. Em suma, tal como denunciado por Carnelutti, negamo-nos a ver “qualquer germe de mal nos que são chamados de bons, qualquer germe de bem nos que são chamados de maus”. Concede-se um irracional e antidemocrático protagonismo probatório à palavra do policial. No texto de hoje, vou abordar o valor probatório concedido à palavra do policial, analisando o que justificadamente seria possível extrair dela, sem deixar de destacar ajustes necessários à compatibilização entre seu uso e um sistema de justiça constitucional e democrático. Vamos lá.
O primeiro óbice ao uso que se faz da palavra do policial deve-se à condição de testemunha em que ele é ouvido. Nos mais diversos sistemas, oriundos de diferentes culturas jurídicas, testemunha é a pessoa estranha ao feito chamada a juízo para depor sobre o que sabe a respeito do fato litigioso. Aqui, cabe esclarecer que nos referimos ao policial que atua na ponta de contato entre sociedade e sistema jurídico penal, isto é, ao policial militar. É ele quem relata ter encontrado certa quantidade de entorpecente com acusado, que afirma ter enfrentado resistência à abordagem, que, finalmente, realiza a prisão em flagrante. Só por isso, já não deveria fazer o menor sentido aos magistrados ouvi-los como testemunhas: policiais não são estranhos ao feito pois têm interesse direto em justificar as suas ações; buscam contribuir a que se conclua pela correção de seus cursos de ação.
Adicione-se a isto, o fato de que o arranjo das instituições brasileiras incentiva que sejam atingidos números elevados de prisões em flagrante. A pesquisa realizada por Maria Gorete Marques de Jesus, que conta com diferentes formas de obtenção de dados[3], contribui para esta conclusão. Nas entrevistas que a pesquisadora realizou, policiais civis e militares mencionaram a existência de uma política de metas, que tem como principal indicador a realização da prisão. Essa lógica de produtividade, aliás, encontra-se registrada no site da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e leva o explícito título de “produtividade policial”. De mês a mês, a Secretaria dá conta à população do quanto vem fazendo em nome do combate à criminalidade[4] (no mês de janeiro de 2020, por exemplo, 2.412 pessoas foram presas em flagrante na cidade de São Paulo). A tendência à justificação de suas ações e o incentivo institucional que o sistema oferece à eficiência policial deveriam ser razões bastantes para que o policial nunca fosse ouvido como pessoa desinteressada, isto é, como testemunha.
No entanto, o estado atual de coisas reflete radical desprezo a considerações como estas. Para ser mais exata, uma ida às decisões judiciais dos tempos atuais nos mostra que a presunção de veracidade do que o policial afirma ter ocorrido desempenha papel de destaque na determinação dos fatos. A conhecida súmula 70, formulada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pretende exatamente cristalizar esse entendimento, apaziguando eventuais questionamentos quanto à sua suficiência probatória para as decisões condenatórias.
O fato de restringirem-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.
Embora não sumulado nos outros estados, nele esse conteúdo também se encontra majoritariamente sedimentado. É o que se pode depreender da análise conjunta de pesquisas como a de Marcelo Semer[5], da já mencionada Maria Gorete Marques de Jesus e do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Debruçando-se sobre o funcionamento das audiências de custódia, pesquisadores do IDDD chegaram a números que merecem a nossa atenção: num universo de 2.774 casos[6] (divididos em 13 cidades e 9 estados), em 55,6% dos casos, a palavra do policial que efetuou o flagrante era a única fonte de relato contra os custodiados. Considerando somente a conduta de tráfico de drogas, a palavra do policial era a única prova apresentada contra o custodiado em 90% dos casos[7]. Em 85% dos casos, houve convergência entre o pedido formulado pelo órgão acusador e a decisão judicial. No correr das páginas de Semer, o leitor esbarra com trechos das decisões que condenam a partir da presunção de idoneidade do agente da lei:
(…) as declarações de agentes públicos tem fé pública, cabendo à parte que alega provar o contrário… (sentença 275);
as declarações dos agentes estatais, a princípio, os testemunhos de policiais revestem-se de credibilidade por ostentarem presunção de veracidade (sentença 568);
deve-se levar em conta a fé pública da autoridade policial e seu desinteresse no deslinde da causa – a não ser o combate ao crime (sentença 368)[8];
O mesmo destaque à palavra do policial pode ser constatado no trabalho de Jesus, quem estabelece um leque de crenças as quais, por sua vez, desempenham papel fundante à construção do tratamento jurídico enquanto presunção relativa: as crenças na função policial (“os policiais são funcionários públicos no cumprimento do dever legal…”, “os policiais têm fé pública”)[9] e na conduta do policial (“os policiais não têm motivos ou interesses para saírem por aí prendendo pessoas inocentes que não conhecem”)[10] contribuem à consolidação do entendimento de que a palavra do policial é o ponto de partida adequado à reconstrução dos fatos. Até porque, “o policial sabe o que está fazendo” (crença no saber policial)[11]. Na fala de um dos juízes entrevistados por Jesus, a polícia tem o “bom discernimento na diferenciação entre o usuário e o traficante”, “eles ficam atentos à postura, analisam para ver se uma pessoa está passando uma coisa para outra (pessoa)” etc[12].
Assim, os relatos resultantes do “tirocínio policial” ganham status jurídico de presunção legal relativa, servindo indevidamente à imposição do ônus da prova à defesa. Tal como ocorre com as presunções deste tipo, à condição de que não haja prova em contrário, um enunciado fático não confirmado por provas é tido como verdadeiro. Neste cenário, a situação do réu se torna ainda mais difícil, pois a atitude judicial de aderência prima facie à palavra do policial acaba significando radical falta de credibilidade às provas trazidas pela defesa, principalmente à palavra do réu. O princípio segundo o qual o réu não está obrigado a produzir prova contra si mesmo é interpretado, no mais das vezes, como autorização à mentira. A sua vez, essa autorização à mentira é elevada à presunção relativa: o policial diz sempre a verdade porque é desinteressado e tem fé pública, já o réu sempre mente porque é interessado em escapar. Salvo se confessa, tudo o que disser – e até mesmo o que não disser, como o ficar em silêncio[13] – será tido como mera estratégia para se evadir do castigo merecido.
Ressalte-se que o réu não tem compromisso com a verdade, tampouco em produzir prova contra si, sendo-lhe autorizado, inclusive, no exercício do direito de defesa, parmanecer em silêncio, devendo, por conseguinte, o seu depoimento ser analisado com cautela. (sentença 608)
No distrito, ficou em silêncio, respaldado em norma de ordem constitucional, fato, posto que seja um direito constitucional, não condiz com a atitude de quem é inocente. (sentença 163)
Em juízo, optou por permanecer silente, conduta incompatível com aquela que se espera de alguém que esteja sendo devidamente acusado de qualquer prática delitiva. (sentença 203) [14]
Nosso desenho institucional serve a resultados que não podem ser racionalmente justificados. Não há qualquer apoio racional ao excessivo valor atribuído à palavra do policial. Colocar a questão em sua dimensão adequada implicaria reconhecer que uma investigação poderia ter seu início a partir do relatado pelo agente da lei, mas sob nenhuma hipótese seria possível reconhecê-la como prova suficiente a satisfazer a exigência elevada que um standard probatório penal deve apresentar. O conteúdo de um relato, seja de quem for, deve ser corroborado por outros elementos probatórios, que de modo independente, avalizem a mesma conclusão. Um “conjunto”[15] probatório composto apenas por provas ancoradas na palavra do policial – testemunho do policial, reconhecimento do réu pelo policial, confissão do réu colhida pelo policial – nem de longe pode servir à qualquer decisão que se pretenda justificada[16]. O livre convencimento não deve ser interpretado como liberdade de o juiz se afastar de critérios racionais.
Se é certo dizer que a livre valoração contrapõe-se à prova taxada, de modo algum ela significa caminho aberto às intuições, sentimentos ou pressentimentos do julgador[17]. Mercedes Fernández López constrói a sua argumentação no sentido de defender requisitos mínimos de credibilidade para que a palavra de alguém possa ser ser considerada à etapa de valoração e, via de consequência, possa eventualmente servir à condenação de alguém. Tais requisitos teriam a função de impedir o exercício abusivo da valoração, iluminando as margens da uma atividade intelectual racional. Como mínimos, não se pode esperar desses requisitos que “garantam a verdade da declaração, mas sem dúvidas contribuem a minimizar as possibilidades de erro na valoração”[18]. Por razões de espaço, farei uma rápida ida a eles:
a) a ausência de incredibilidade subjetiva: em primeiro lugar, seria a necessária ausência de qualquer motivação escusa para a incriminação de alguém. O sentimento de vingança, de obediência a um terceiro, ou ainda o interesse direto por alguma vantagem, seriam fatores capazes de desabonar a palavra de alguém. Por si só, no entanto, esse requisito não afastaria a palavra de alguém do conjunto de provas a ser considerado pelo juiz. Tomado com cautela, seria necessário contemplá-lo em conjunto com os demais requisitos[19].
b) a verossimilhança da alegação: em segundo lugar, seria necessário que o relato não fosse fantástico, correspondendo-se às regras da lógica e da experiência.
c) firmeza ao longo do procedimento: em terceiro lugar, seriam necessárias reiteração e constância na declaração inculpatória. Por reiteração deve-se entender a ausência de modificações importantes e por constância a ausência de retratações. Contradições em aspectos secundários da declaração, bem como a existência de lacunas, não são dados que, por si só, tornariam imprestáveis as declarações[20].
d) Finalmente, há que se exigir corroboração por outros elementos de prova. Esse é o mais importante dos requisitos, sobre o qual, a jurisprudência espanhola têm sido unânime[21].
A partir desses requisitos mínimos de fiabilidade à palavra de alguém, podemos voltar à palavra do policial no nosso sistema de justiça. Aqui, o juiz age como “continuidade do trabalho do policial”[22], dando seguimento à chancela que o órgão acusatório já reconheceu ao relato do oficial da lei. Nesta rotina, o compromisso cognitivo com a hipótese acusatória gera, por um lado, a supervalorização de elementos probatórios confirmatórios (viés confirmatório) e, por outro, a desvalorização de elementos contrários à hipótese previamente escolhida (efeito inércia). O que Cordero chamou do primado da hipótese sobre o fato[23] – e que também pode ser entendido a partir da teoria da dissonância cognitiva[24] – deve servir à franca revisão do tratamento institucionalmente oferecido à palavra do policial. Dessa feita, impõe desfazer-nos da presunção de veracidade da palavra do policial; não porque se desconfia do policial, mas porque nenhuma palavra, com independência de quem seja, deva ser tomada como presumidamente verdadeira[25]. A fiabilidade dos relatos deverá ser demonstrada no curso do processo através de criteriosa valoração. Entre a presunção de inocência e a presunção de veracidade da palavra do policial, não há convivência possível. Sendo o status da primeira constitucional, enquanto a segunda é resultante de postura irracional e enviesada, é fácil escolher qual delas merece a nossa incondicional defesa. A presunção de inocência, e só ela, pode ser lente capaz de corrigir a curta visão de que Carnelutti nos falava.
[1]. São 752 mil presos em penitenciárias, mais 14.475 presos em unidades prisionais de outra natureza, como delegacias de polícia, hospitais de custódia etc. Os demais dados relativos à população prisional brasileira também foram extraídos deste relatório.
[2]. Semer, Marcelo. “Sentenciando tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019.
[3]. Em “Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico e drogas no sistema de justiça” Maria Gorete Marques de Jesus divide com o seu leitor pesquisa em que analisou: a) 667 autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, realizados entre dez 2010 a janeiro de 2011; b) 604 sentenças; c) 70 entrevistas com profissionais da segurança pública e da justiça criminal; d) diários de campo”: d.1) de 10 audiências de instrução e julgamento realizadas entre fev-maio de 2011, d.2) de 63 audiências de custódia de abril-julho de 2015, 27 audiências de instrução e julgamento de jul-nov de 2018. Jesus, Maria Gorete Marques de. “Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico e drogas no sistema de justiça”. In Revista Brasileira de Ciências Sociais”, n. 102, 2020.
[4]. https://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Pesquisa.aspx
[5]. A pesquisa realizada por Marcelo Semer compreende a análise refinada de 800 sentenças de tráfico de drogas, provenientes de 8 estados, 315 municípios, proferidas por 665 juízes.
[6]. IDDD, “O fim da liberdade, relatório nacional”, p. 6: “Ao todo, foram analisados 2.774 casos que passaram pelas audiências de custódia de 13 cidades de 9 estados. A amostra se refere a pessoas custodiadas e não a audiências realizadas, já que é comum atendimento simultâneo de indivíduos que foram presos juntos”.
[7]. IDDD, op. cit., p. 25.
[8]. Semer, op. cit., p. 188.
[9]. Jesus, op. cit., p. 5.
[10]. Jesus, op. cit., pp. 5-6.
[11]. Jesus, op. cit., p. 7.
[12]. Jesus, op. cit., p. 7. Juiz 10.
[13]. Semer, op. cit., p. 206.
[14]. Semer, op. cit., p. 207.
[15]. A palavra conjunto está entre aspas porque é preciso mais de um elemento probatório para que se possa fazer uso correto da palavra conjunto.
[16]. Sobre os critérios racionais de valoração das provas orais, ver
[17]. Fernández López, Mercedes. “La valoración racional de las pruebas declarativas”. In Jueces para la democracia, n. 64, 2009. p. 98.
[18]. Fernández López, op. cit. p. 105.
[19]. A autora menciona a dificuldade de se apreciar a satisfação desse requisito no caso de menores de idade, p. 109.
[20]. Fernández López, op. cit, p. 110.
[21]. Fernández López, op. cit., p. 110.
[22]. Semer, op. cit., p. 287.
[23]. Cordero, Guida alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p. 51.
[24]. Ritter, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019.
[25]. O problema das “falsas memórias” e dos chamados “erros honestos” localizam-se aí. Mesmo as pessoas que querem contribuir, de boa fé, à correta determinação dos fatos podem descrever, por engano e atitude não intencional, um fato que não ocorreu daquele modo. Sobre isso, ver as obras de Elizabeth Loftus, Giuliana Mazzoni e, no cenário brasileiro, Lilian Stein e Gustavo Noronha de Ávila.
Publicado originalmente na coluna “A toda prova”, do Boletim Trincheira Democrática (2020, ano 3, n. 8) do IBADPP.