blog

CRIMINALISTAS: PRECISAMOS FALAR SOBRE O FILME “O POÇO”

Num roteiro de David Desola e Pedro Rivero, originalmente escrito para ser uma peça de teatro, e com direção de Galder Gaztelu-Urruti, O Poço (El Hoyo, no original) estreou no Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2019 e foi lançado como original da Netflix no final de março.

Os cenários do filme foram criados dentro de um pavilhão pertencente à Cruz Vermelha, no porto do município espanhol de Bilbao. O filme, classificado como terror/suspense, segue a jornada de Goreng (Iván Massagué), que se ofereceu para uma estadia em “um Centro Vertical de Autogestão”.

O Poço é uma espécie de prisão vertical com dois reclusos por andar e um enorme buraco no centro, por onde, todos os dias, desce uma plataforma com uma suntuosa mesa com um luxuoso banquete preparado com as melhores iguarias (escolhidas por quem entra na prisão).

Acontece que os reclusos do nível 1 são os primeiros a comer, sendo que a plataforma, depois de dois minutos, desce ao nível seguinte e assim sucessivamente. O ritual se repete por incontáveis andares abaixo e os indivíduos são forçados a comer os restos de quem está logo acima.

Com essa dinâmica, a bela mesa do banquete vai sendo consumida e depredada a cada andar. Desde o começo do filme, o espectador vai sendo tratado com sucessivos choques de realidade, com cenas que passam da cozinha extremamente limpa e organizada (apresentada com uma trilha completamente distópica) à vida miserável do Poço.

Devido à hierarquia que se estabelece, fica implícito que cada nível não comunica nem colabora com os demais. Desde logo, percebe-se uma mensagem que sugere a identificação de um sistema que parece ser feito para isolar os indivíduos, não permitindo ações organizadas e coletivas. Além disso, o filme mostra que a falta de recursos para os habitantes da parte mais debaixo da estrutura seria causada pela ganância de quem está no topo.

A expectativa era simples: se os dois residentes de todos os níveis comessem apenas o que precisassem, haveria o suficiente para todos.

Precisamos falar sobre o filme O Poço.

Trimagasi é um senhor aparentemente inofensivo, sendo o primeiro companheiro de Goreng. Ele está no Poço há bastante tempo e explica como as coisas funcionam, deixando muito claro que cada um depende apenas de si mesmo, com a frase: “comer ou ser comido”. Trata-se de uma pessoa que enlouqueceu no interior da sociedade de consumo, individualista, egoísta, autocentrada, que encara toda essa absurda e complexa situação de desigualdade como a “normalidade”. Para ele tudo “é óbvio”.

Já no início do filme, nos deparamos com uma das mais perigosas situações da vida de um/uma profissional da advocacia criminal: a normalização do insuportável.

Depois de tantos flagrantes, de tantas audiências, de tantas defesas e tantos julgamentos; depois de tantas ilegalidades, de tanta prepotência, de tanta injustiça; depois de tanto choro, de tanto desespero, de tanta morte e de tanta dor; depois de tanto transitar pelos andares do “poço”, muita gente da advocacia vai perdendo a sensibilidade, a capacidade de espanto, de estranhamento e de indignação.

É assim mesmo. Não há como ser diferente. É óbvio.

A força, a combatividade e a coragem são características que costumam ser atribuídas a criminalistas. Parece normal. Parece óbvio.

Mas não é.

Penso que uma nova geração de criminalistas precisa acordar para o atual contexto no qual estamos todos inseridos. Estamos vivendo no Poço e não podemos achar que é normal. A advocacia criminal, portanto, deve ser habitada por pessoas sensíveis, compassivas, com uma humanidade e capacidade de entrega acima da média. No lugar da força para o combate, a capacidade de ternura para a defesa do direito de defesa. No lugar da discussão ácida, irônica, destrutiva, uma comunicação pacífica capaz de gerar aproximação, acolhimento, entendimento.

A dessensibilização é a morte do criminalista. Não são apenas clientes, assistidos, réus, acusados, pacientes, recorrentes, agravantes; são pessoas, seres humanos, gente. Todos nasceram de uma mãe e ganharam um nome. Todos viveram os seus abandonos, suas perdas, as violências, as misérias. Humanos, todos.

Nada é normal ou óbvio dentro do “poço” em que estamos. Não podemos desejar esse “normal”. Não podemos produzir esse “normal”. Não podemos aceitar esse “normal”.

Trimagasi, o primeiro parceiro de Goreng, escolheu uma faca que se afia sozinha, como objeto para levar ao poço. Uma faca para atacar e se defender a todo o custo, para viver dentro da luta de “todos contra todos”, para estar preparado e lutar pela sua sobrevivência, matando ou morrendo.

E a metáfora é bastante forte para quem tem olhos de ver. Os que estão abaixo são desconsiderados pelos do andar de cima. Todos estão sozinhos e a vida torna-se a disputa de uns contra os outros.

Isso não é óbvio.

Goreng entra na estrutura já no andar 48, onde restavam apenas migalhas do lindo banquete apresentado no primeiro andar. Ali, depois de Trimigasi, Goreng conhece uma figura que quebra as regras: Miharu. A mulher é uma espécie de assassina selvagem que utiliza a plataforma para se locomover na prisão a procura de um suposto filho, que estaria perdido na estrutura.

Seremos nós, também, assassinos, sobreviventes, por ação e omissão, no nosso percurso pelos andares da estrutura? Ou seremos nós, também, os desesperados por esperança, em busca de um filho chamado justiça ou direito ou garantia ou respeito?

Quando encontra Imoguiri, a mulher que trabalhava para a Administração e se voluntariou para participar da “experiência”, Goreng percebe a tentativa de mudar o modo de funcionamento da estrutura, dividindo a refeição em porções e pedido que os demais façam o mesmo. A ideia de “solidariedade espontânea” é recebida pelos demais com risadas e insultos. Irritado, Goreng obriga os ocupantes dos níveis que estão abaixo a acatarem a ordem, ameaçando que iria espalhar fezes na comida: “Solidariedade ou merda!”.

E os de cima, questiona Imoguiri. Ao que ele responde: “Não posso cagar para cima”.

Mais uma vez, o filme incita à reflexão: somos aqueles que insistem em ações voluntaristas, mesmo diante das risadas, do deboche a da desconsideração de todos? Irritados, ameaçamos aqueles que não nos ouvem com a ameaça de jogarmos merda na sua comida? Em algum momento, adotamos a postura: solidariedade ou merda? Faça o que eu digo, porque é para seu bem, ou eu serei obrigado a usar a força.

Finalmente, com a chegada do terceiro parceiro de cela, Baharat, que o filme dá uma virada e o cenário todo muda. O homem negro e bastante crente em Deus move-se para cima com uma corda, cheio de esperança de conseguir sair da estrutura, suplicando para a boa vontade dos habitantes do andar de cima.

Quando um membro do andar de cima defeca no rosto de Baharat, ele e Goreng decidem dominar a plataforma e redistribuir a comida. Unidos, eles sobem na plataforma e promovem a redistribuição da comida, privilegiando os andares mais baixos, onde nunca chegava qualquer alimento. O objetivo é mudar a ordem dos acontecimentos e passar uma mensagem para quem está no topo.

O filme permite importantes e necessárias discussões sobre capitalismo e socialismo, sobre redistribuição da riqueza, sobre individualismo e comunitarismo, dentre tantos temas fundamentais da existência humana.

O diretor destacou a um site especializado que: “O local onde você nasceu é importante –em que país e em qual família–, mas somos todos muito parecidos. Dependendo de onde você estiver, você vai pensar e se comportar de uma maneira diferente. O filme coloca o espectador nessa situação para enfrentar os limites de sua própria solidariedade. É fácil ter solidariedade se você está no nível 6; se você tem muito, pode desistir de parte disso. Mas você terá solidariedade se não tiver o suficiente para si mesmo? Essa é a questão”.

Ao site Cineuropa, ele completa o pensamento: “Em um determinado momento, a humanidade terá que avançar em direção à distribuição justa da riqueza […] Devemos insistir para que nossos líderes assumam a responsabilidade, mas eles não devem estar sozinhos nisso; se usarmos eles como desculpa para não fazermos nada, nada mudará. Não há ataque direto a ninguém: o filme não se posiciona contra aqueles dos níveis superiores; […] o filme critica o capitalismo, mas também o sistema socialista”.

O final, que não será aqui tratado, é o ponto alto do filme. A metáfora fica aberta a várias propostas e considerações.

Qual a mensagem final do filme? Faça você mesmo as suas reflexões.

Da minha parte, quero chamar a atenção da comunidade de criminalistas para a nossa posição diante do “Poço”. Que o filme seja capaz de nos fazer pensar sobre quem temos sido, sobre nossa responsabilidade pela manutenção ou mudança do estado de coisas que nos assola, enfim, sobre nossa postura como seres humanos e como profissionais do direito.

Mais não digo!

COMPATILHE!

Facebook
WhatsApp

LEIA TAMBÉM