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EU SOU O PESSOAL DOS DIREITOS HUMANOS

Você é do pessoal dos direitos humanos?

A ex-apresentadora de televisão Maria da Graça Xuxa Meneguel, numa entrevista sobre direitos dos animais, sugeriu que presos fossem usados como cobaias. Ela chegou a dizer que seria uma oportunidade de tais pessoas terem alguma utilidade na vida antes de morrerem. Xuxa falou, ainda, que: “agora vai vir um pessoal dos Direitos Humanos e dizer que não, eles não podem ser usados”. Ao passar pelo “cancelamento”, veio o pedido de desculpas e o reconhecimento do erro.

Se a história é, simplesmente, o resultado da vitória de uma narrativa sobre outras, como vamos narrar a história do que estamos vivendo nesses últimos anos?

Certo é que, desde meados de 2017, o racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia, o preconceito e a discriminação, não são tolerados nas redes sociais e submetem artistas e anônimos ao cancelamento. Esse fenômeno tem sido uma forte arma para atacar esses temas, embora não, necessariamente, seja o mais eficaz ou adequado.

Sobre o conteúdo da fala da Xuxa, precisamos conversar com Zigmunt Bauman.

No meio de tantos livros indispensáveis para o esboço de uma narrativa do nosso tempo, talvez nenhum seja tão dramático e importante quanto a obra Vidas Desperdiçadas[i].

Um paralelo entre o lixo que é produzido pela sociedade pós-industrial tecnologicamente avançada e os seres humanos improdutivos e não-consumidores, incapazes e incapacitados para o consumo. Sim, o livro fala sobre o “refugo humano”, sobre “seres refugados”, sobre pessoas consideradas “excessivas”, “redundantes”. Fala sobre aqueles que não podem ser reconhecidos ou obter a permissão para ficar, tomados como um “produto inevitável” da modernização, acompanhante inseparável da modernidade, que deve ser tomado como um inescapável efeito colateral da construção da ordem.

Todo o dia, toda hora, a cada minuto de nossas vidas modernas líquidas, estamos a consumir o novo e, consequentemente, a produzir mais e mais lixo, decorrente do descarte do que não mais tem utilidade. A vida moderna, baseada nesta contínua linha consumo/descarte, torna cada vez mais frequente a inesperada e indesejável necessidade do convívio com o lixo, que se nos apresenta de maneira abrupta, desagradável, inoportuna.

O que fazer com aquilo que não tem serventia, que não tem utilidade, que não tem valor? O que fazer com aquilo que não está mais no mercado?

Bauman constrói uma narrativa desconcertante ao fazer a interligação da gestão do lixo, como aquilo que sobra do processo de produção na sociedade moderna, com as políticas de gestão da massa de pessoas marcadas pela incapacidade de produtividade e/ou de consumo.

Para narrar a virada e as primeiras duas décadas desse século, teremos que falar sobre uma crise aguda da indústria de remoção de refugo humano.

O Estado de bem-estar (onde existiu) transformou-se em Estado produtor e recolhedor de lixo humano. Na área do planeta comumente descrita e compreendida pela ideia de “sociedade”, não há um espaço reservado para o “refugo humano”. A pessoa refugada, na melhor das hipóteses, é tolerada, ou seja, admitida a contragosto, suportada, mesmo sendo tomada como indesejada. Os aceitos, não-refugados, na melhor situação, tratam do refugo humano como objeto de benevolência, caridade e piedade. Muitas vezes, ao contrário, na versão mais perversa da meritocracia como hino dos estados movidos pela noção de ordem e progresso, as pessoas falhadas são acusadas de indolência, preguiça, malandragem, falta de vontade e/ou interesse.

Uma narrativa crítica sobre o que temos vivido nas últimas décadas deve   passar, de alguma forma, pela descrição desse ambiente da vida contemporânea, na qual o problema do refugo humano desafia a razão neoliberal, na qual o mercado torna-se o regulador da vida e da morte, orientador de todas as ações e responsável pela transformação de tudo e todos em mercadoria.[ii]

Bauman mostra que a produção de refugo humano atinge números incríveis e a sociedade da segurança e do controle passa rapidamente a precisar de locais de despejo do lixo. Aqui, entra em ação a indispensável indústria da segurança, que se torna, rapidamente, um dos principais ramos responsáveis pela gestão do refugo humano, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, também se torna uma das maiores produtoras/etiquetadoras de pessoas marginais, perigosas, indóceis e, portanto, refugadas.

Na tutela do refugo, o modo especial de pensar e executar estratégias de neutralização do outro acontece, de forma primária, pelo uso da incriminação. O estado policial-penal resolve o problema da exclusão pela via do depósito das pessoas refugadas nas cadeias. Num paralelo insuportavelmente preciso, Baumam mostra como os presídios são verdadeiros depósitos de lixo humano da modernidade, ou seja, numa sociedade líquida imersa num projeto neoliberal, as pessoas sem capacidade de produção ou consumo têm sido destinadas aos depósitos de lixo. A sobrevivência do modelo neoliberal depende da destreza e da proficiência na remoção do lixo. O preso é o lixo. A penitenciária é o depósito. O idoso é o lixo. O asilo é o depósito. O louco é o lixo. O manicômio é o depósito. O pobre é o lixo. O gueto é o depósito.

Baumam fala do interesse da sociedade do consumo no produto e não no descarte. Dois tipos de caminhão deixam o pátio da fábrica, sendo um deles carregado de mercadorias consumíveis, úteis, que são levadas para os depósitos ou para as lojas. O outro, com os dejetos, vai para os depósitos de lixo. Aprendemos, desde cedo, a admirar e valorizar o primeiro tipo de caminhão. Pensamos no segundo como aquele que não deve ser visto, que não pode estar na luz do dia, expondo a terrível realidade da sua presença. Os caminhões de lixo devem remover os dejetos da maneira mais radical, ou seja, tornando-os invisíveis. Não queremos olhá-los, nem imaginar que existem, nem pensar neles. Os lixeiros da sociedade moderna trabalham em silêncio, na calada da noite e levam os refugos para locais distantes dos centros, especialmente planejados para não serem percebidos pelos incluídos.

A metáfora ajusta-se perfeitamente ao estado da arte do sistema de justiça criminal, no qual está inserido o sistema penitenciário brasileiro. Excluídas do processo produtivo, do mercado de consumo, da configuração do que seja a “sociedade”, as pessoas refugadas passam a constituir um fator de risco para as demais, um fator desencadeante de constrangimento, notadamente, nos Shoppings Centers que ajudaram a construir, mas que não devem frequentar. Essas pessoas devem ser mantidas neutralizadas nos guetos ou nas cadeias, tudo para que não invadam os espaços reservados aos consumidores.[iii]

No projeto de gestão do lixo, há uma especial forma de atuar, marcada pela discrição. O sistema penal deve remover os dejetos humanos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis. As prisões são depósitos de neutralização de lixo humano. O preso é o segredo vergonhoso de uma sociedade desigual. É o segredo sombrio e vergonhoso de todo processo de produção de pessoas sem valor comercial que, como tal, devem permanecer escondidas.

A modernidade é uma condição da produção compulsiva e viciosa de projetos, pois, onde há projeto, há expectativa de mudança. Neste estado de emergência, é indispensável que sejam tomadas novas iniciativas penais a cada momento, antes mesmo que uma anterior iniciativa possa demonstrar seus efeitos (sabidamente pífios ou inexistentes). Há sempre um projeto de reforma em marcha, como garantia de que a solução está por vir, ainda que, certamente, pelo endurecimento do sistema. Nesse compasso, a política cria e mantém no espaço público uma máquina estatal mortífera, implacável em relação às camadas mais vulneráveis da população, exatamente aqueles refugados pelo preconceito estrutural, entenda-se: negros, mulheres, LGBTQ+. Sem qualquer interesse em aplicar recursos na promoção do Estado de bem-estar, o neoliberalismo joga todas as suas fichas no Estado Penal como forma de controle, numa política governamental aniquiladora da população de refugados.

Há, efetivamente, uma opção a ser feita, entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos (numa visão de longo prazo guiada por valores de justiça social e de solidariedade) e o tratamento policial-penal, ligado ao controle de massas, do subproletariado, dos excessivos, num processo que se concentra, especialmente, no curto prazo dos períodos eleitorais, a partir de máquina midiática sem qualquer controle (que vende a insegurança como mercadoria).

Refugo é tudo aquilo que não serve. É o que foi deixado de lado, porque não foi usado, porque foi usado e perdeu a serventia, porque sobrou. Enfim, é tudo o que tenha o lixo por destino. Não somos educados para nos importarmos com o lixo. Sabemos que ele é inevitável, que é a sobra de tudo o que consumimos ou o que não conseguimos consumir, porque pereceu, porque envelheceu, porque saiu da moda. Não há luxo no lixo. Tudo isto parece muito natural. Desprezamos o que não tem utilidade, em detrimento daquilo que se afigura importante para o momento. Fazemos isto com os alimentos, com as máquinas, com as roupas, com as informações.

Mas e quando estamos falando de pessoas?

Será possível imaginarmos que é normal haver pessoas refugadas, porque não têm serventia, porque perderam a utilidade, porque não produzem, porque geram despesas, porque se apresentam, tal como o lixo, desnecessários, desajeitados, inúteis, amontoados nos lugares mais afastados, como sobra de produção, como excedentes?

Quando o homem branco, heterossexual, empregado, machista, racista, homofóbico passa por pessoas transformadas em dejetos, vítimas da exclusão, da falta de espaço, da falta de sorte, da falta de assistência, não enxerga nelas a condição de refugo de uma sociedade injusta e díspar. Ele não quer ver essa realidade. Desvia o olhar. Enjoa. Porém, quando o vento muda e o cheiro invade a sua sala de estar; quando o refugo invade a grama do seu quintal; quando a montanha de inúteis entra na vida dessa “pessoa normal”, a reação imediata é apontar com raiva e indignação para a ineficiência do estado policial-penal. O “pai de família pagador de impostos”, tomado por um pensamento individualista, não-solidário, de autopreservação por negação do problema, reclama da ineficiência do Estado-recolhedor-de-lixo. O problema do lixo humano não pertence aos incluídos, porque o lixo não pertence a alguém. O lixo não tem dono. É dever do Estado recolhê-lo e tirá-lo da vista de quem produz.

Como falar em direitos fundamentais nesse contexto de uma sociedade elitista, seletiva, orientada pelo mercado, que acolhe, num padrão de normalidade, apenas o consumidor egocêntrico, autocentrado, ensimesmado, perverso, sem limites e sem qualquer preocupação com o outro, que é tomado sempre como concorrente, como inimigo, como aquele a ser neutralizado ou aniquilado. O outro não é normal. O outro é marginal, doente, rebelde, insuficiente, incapaz. O outro é o desajustado; e quem não se ajusta, não serve; e quem não serve, não pode atrapalhar a ordem e o progresso.

Xuxa, quando propôs o uso dos presos como cobaias, “apenas” quis dar utilidade ao refugo. Posteriormente, quando gravou um pedido de desculpas e reconheceu o erro na manifestação, o que foi muito importante, disse ter pensado que uma pessoa condenada por estupro poderia fazer algo para ajudar outras pessoas. Maria da Graça, mais uma vez, expõe o desejo de dar utilidade ao inútil, dar valor ao que não tem valor, conceder alguma humanidade a quem não é admitido como igual. Xuxa falava sobre os direitos dos animais e, nesse contexto, fez a proposta de usar presos e poupar os animais.

Encerro esse texto com Emmanuel Lévinas. O rosto do outro (infinito) nos faz um apelo à responsabilidade, que deve ser desinteressada. Somos responsáveis pelo outro, sem esperar nada em troca, ainda que ao custo da nossa vida, como nos ensina o filósofo. Essa responsabilidade é a estrutura essencial primeira da subjetividade. Por isso, devemos tomar a ética como a própria responsabilidade pelo outro. Lévinas mostra como o rosto pede-me e ordena-me, fazendo-me responsável, sem esperar reciprocidade: a minha responsabilidade é de uma responsabilidade total, pois o eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros. Com Dostoievski, ensina: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros”.[iv]

Mais não digo.


[i] BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

[ii] Rubes Casara fala num estado pós-democrático regido por uma racionalidade neoliberal que acaba com os limites ao autoritarismo e que coloca em marcha várias estratégias para gestão dos “indesejáveis”, tomados como “pessoas sem valor de uso”. Nesse sentido, devemos compreender que os direitos fundamentais estão sendo relativizados exatamente por significarem obstáculos tanto à lógica do mercado, quanto à eficiência punitiva indispensável ao controle dessas pessoas “indesejáveis” ou “sem valor de uso”. (CASARA, Rubens. ESTADO PÓS-DEMOCRÁTICO: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2018).  

[iii] WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 7.

[iv] LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1982, pp. 87-88 e 93.

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