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A AVENTURA DOS CAÇADORES DE RAIO NA ADVOCACIA CRIMINAL

Quando eu conheci a história dos “Caçadores e Caçadoras de Raio” fiquei muito impressionado.

Reza a lenda que alguns e algumas criminalistas olham para o horizonte desse País sem fim com a especial habilidade de perceberem quando “um grande raio cai em alguma cidade brasileira”. Nesse momento, como que atendendo a um chamado do destino, esses/essas profissionais iniciam suas jornadas em direção ao local onde foi identificado o tal raio, o que demanda, por certo, a movimentação da logística própria para a aventura que estão dispostos a enfrentar.

Um “raio”, no caso, é um fato criminal altamente midiático, daqueles que coloca toda a sociedade local, regional ou estadual em estado de comoção, de indignação, de surpresa, dentre outras possibilidades que atraiam a atenção da mídia. Eis o ponto fundamental para que um caso criminal possa ser considerado um “raio”: ele deve atrair muita mídia para a cobertura dos acontecimentos da investigação, do processo e/ou do julgamento. Sem mídia, os réus são apenas acusados e o caso é apenas mais um como tantos nesse Brasil imenso.

Identificado o “raio”, começa a jornada para alguns desses/dessas desbravadores/desbravadoras. O primeiro passo foi vencido, pois o caso já foi mapeado e identificado como sendo um daqueles cercados de mídia, com notícias nas redes de televisão, nas redes sociais etc. O segundo passo será a identificação das pessoas a serem convencidas, porque, sim, os caçadores/as caçadoras não são chamados/chamadas para atuar no processo. Eles/elas precisam convencer as pessoas acusadas ou seus familiares de que eles, exatamente por serem caçadores de casos midiático e por serem muito competentes, são as pessoas certas para atuarem naquele “caso-raio”. O terceiro passo, agora chego na parte da jornada que mais interessa para esse escrito, é aquele em que o aventureiro ou aventureira assume o caso. Isso acontece, geralmente, depois de muita conversa, muita promessa e muita enganação, e pode ser pela juntada direta de procuração (que se vai sobrepor a outra já existente nos autos) ou por revogação de poderes daquela pessoa que já está atuando ou, finalmente, pela indução do acusado ou acusada a pedir que seja feito um substabelecimento sem reservas para o/a caçador/a.  

Nesse momento, cabe uma ressalva especial aos mais afoitos e que, nesse ponto da leitura já possam estar se colocando nas condições de Caçadores ou Caçadoras de Raio, ofendidos ou não. É preciso ter calma, pois essa condição não é para qualquer pessoa. Há uma condição especial que caracteriza esse tipo de aventureiro/aventureira, sem a qual não há como pertencer ao grupo.

Para ser um/uma Caçador/a é indispensável ter a consciência plena de estar violando o que prevê o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados (e das Advogadas) do Brasil. A pessoa que vai para a jornada de caça ao cliente de caso midiático tem plena certeza de que está atuando contra outra pessoa já contratada pelo acusado/pela acusada ou familiares. Quem caça processo sempre sabe que vai ser antiético com algum/alguma colega de profissão!

Diz o Código de Ética: Art. 1º – O exercício da advocacia exige conduta compatível com os preceitos deste Código, do Estatuto, do Regulamento Geral, dos Provimentos e com os demais princípios da moral individual, social e profissional.

E diz mais: Art. 2º – O Advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce.

Quanto aos deveres, o Parágrafo Único do mesmo artigo: São deveres do advogado; I – preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo seu caráter de essencialidade e indispensabilidade; II – atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé;

Portanto, ao contar aqui a história de aventureiros, não estou me referindo a todos e a todas que assumem casos em andamento, mediante as tratativas necessárias para a obtenção do substabelecimento sem reservas de poderes ou obtendo a autorização expressa de quem esteja atuando para juntar nova procuração aos autos, o que se justificaria apenas por razões de praticidade. Não estou me referindo a essas pessoas.

Vamos combinar que nunca é fácil ingressar num caso em andamento, porque isso demanda ter quer instruir os clientes sobre nossa obrigação ética em relação a quem esteja atuando. É que, muitas vezes, o cliente quer fazer uma “tomada de preços” ou apenas quer ter contato com o novo advogado ou advogada para saber o que eles fariam, caso assumissem a condução do processo. Em qualquer situação, muitas vezes os clientes ficam surpresos quando recebem a informação de que não será possível fazer o atendimento, diante da existência de profissional com mandato válido dentro dos autos. É comum, inclusive, o cliente não voltar a fazer contato quando alertado para “a questão ética”.

Fica a pergunta: DEVO CORRER O RISCO DE PERDER UM CLIENTE POR RAZÕES ÉTICAS? Deixo essa resposta em aberto para a reflexão.

Mas, voltando aos Caçadores e às Caçadoras de Raio, devo referir algo próprio da contemporaneidade, cuja sutileza deve ser observada com muito cuidado. Estou falando da interferência dos aventureiros e aventureiras em casos midiáticos que estejam sendo conduzidos por jovens advogados e advogadas, em qualquer caso, inexperientes na matéria versada nos autos.

A situação mais comum acontece pela intromissão em processo de competência do Tribunal do Júri. Com seus “superpoderes de sedução e convencimento” os caçadores ou caçadoras mostram para o/a Jovem Profissional que será muito melhor promoverem a defesa em parceria, com atuação conjunta. Além de “boa lábia”, um caçador ou caçadora deve ter dinheiro para bancar essas expedições em busca do raio e, depois, deve bancar perícias, assistentes, filmagens para redes sociais etc.

Evidentemente que o Jovem fica obnubilado com tanta parafernália. É sedutora a oportunidade de fazer um Plenário de Júri na minha cidade com pessoas que são verdadeiras “influencers” nas redes sociais. Isso pode ser muito bom para impulsionar a carreira, pensam os/as Jovens Criminalistas. Iludidos com o apelo da visibilidade, embarcam na ideia e perdem completamente o protagonismo que tinham em relação ao caso. Os locais são engolidos pelos forasteiros, tudo sob a ideia de uma advocacia em parceria, feita por irmãos, de forma colaborativa entre as partes que se unem.

Cada profissional é livre para construir sua advocacia criminal como bem entenda. Somos todos adultos e, muitos de nós, já vacinados.

Da minha parte, incumbe aqui deixar aqui o registro de repúdio a esse tipo de procedimento, levado a efeito por profissionais que colocam a vaidade e a sede de crescimento profissional acima da relação ética com os/as colegas de advocacia criminal. Já é tão difícil atuar no processo criminal, com todas as mazelas, com todos os abusos, com toda a intolerância, que chega a ser irritante essa situação de, ainda, ter que enfrentar esses verdadeiros estelionatos praticados por falsários-vendedores-de-ilusões.

Esse escrito é um verdadeiro desabafo e o cumprimento de um dever de velho professor: alertar às gerações de advogados e advogadas em formação para a construção de uma profissão pautada na ética e na honestidade.

Como bem leciona meu Professor de Filosofia (e de vida) Ricardo Timm de Souza, a ética se dá sempre na relação com outra pessoa, sem a qual não seriamos quem somos, sem a qual nossa vida não seria possível. O Outro é condição de possibilidade. Estamos sempre jogados diante do cuidado com o infinito que é o Outro. É isso que mostra quem somos e é isso que separa os aventureiros e aventureiras de quem trabalha com seriedade.

Mais não digo.

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