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A ARTE DA ADVOCACIA CRIMINAL

“A obra interior consiste em que o aluno, como homem que é, como o eu que se sente ser e como quem se reencontra uma ou outra vez, se converta na matéria-prima de uma criação, de uma realização formal, que termina no domínio da arte escolhida. Nele se fundem o artista e o homem, no sentido amplo da palavra, em algo superior. O domínio pleno da arte é válido como forma de vida pelo fato de viver arraigado na verdade ilimitada e ser, como sua ajuda, a arte primordial da vida.”

– Eugen Herrigel (1884-1955) [1]

Quando escreve a obra “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”, o professor alemão Eugen Herrigel conta a experiência de quando foi lecionar filosofia no Japão em 1924, ocasião em que, pelo seu interesse no pensamento oriental, começou a estudar a arte do arco e flecha, conhecida como Kyudo.

A arte do Kyudo depende de muitos anos de prática e paciência. No tiro de arco e flecha, embora o objetivo seja acertar o alvo, o praticante compete contra ele mesmo, pois é indispensável que haja total concentração e entrega do arqueiro, de tal forma que não haja diferença entre praticante e arco, que se tornam um só. Neste momento, a flecha pode ser liberada, não importando tanto a precisão da flecha ou até mesmo se atingiu o alvo, pois isso é apenas uma consequência. Importa saber, isso sim, como o disparo foi feito e em que estado a mente se encontrava quando a flecha foi solta. A prática do arco e flecha mistura arte física e os princípios do zen budismo, ou seja, a noção de que, depois de anos de prática, uma atividade física torna-se fácil, tanto mental como fisicamente, como se o corpo executasse os movimentos complexos e difíceis, sem a necessidade do controle consciente da mente.

Mas, afinal, qual a relação possível da prática do arco e flecha com o aprendizado da advocacia criminal? O autor narra o sofrimento de quem percorre o longo caminho que conduz ao domínio de uma arte: “Arco e flecha são, por assim dizer, nada mais do que pretextos para vivenciar algo que também poderia ocorrer sem eles”.

Pois bem. Quando me perguntam se é possível aprender a arte da advocacia criminal, sempre penso nesse livro. Um ocidental toma contato com uma filosofia de vida completamente estranha e decide aprender uma arte milenar com a qual nunca tivera contato.

Inicialmente, o texto mostra o primeiro contato do ser humano com as adversidades e frustrações advindas do aprendizado de algo completamente novo. Somente a perseverança faz o aprendiz dominar a técnica e, depois, transcende-la, convertendo a ação em arte. Herrigel mostra que a prática do tiro com o arco, não tem objetivo e nem resultado prático, nem visa o aprimoramento do prazer estético, mas leva ao exercitar da consciência. A meta não é apenas acertar o alvo. O arqueiro e o alvo precisam deixar de ser entidades opostas para se transformarem em uma única e mesma realidade.

A Arte da Advocacia Criminal

Acredito que é possível aprender a arte da advocacia criminal.

Como na metáfora do Kyudo, o criminalista iniciante deve ter em mente que o domínio da técnica é fundamental, mas que, muito além do aprender o método (saber-aprender), ele deve praticar sem descanso a melhor técnica absorvida, experimentando todas as possibilidades, enfrentando as frustrações, os medos, os erros, as angústias (saber-fazer). Mais do que isso, o criminalista deve ter a paciência e perseverança do arqueiro para permitir que o tempo faça seu trabalho inexorável e, assim, possa transcender o simples aprendizado da melhor técnica, para atuar nos processos, nos conflitos, nas tomadas de decisão, sempre com toda a inteireza, com toda a fluidez, com toda a plenitude (saber-ser).

Transcender é atuar esquecendo nós mesmos: “o homem é um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando não pensa e não calcula. Pensar sem pensar!”.

A atuação do advogado iniciante na área criminal deve estar voltada para a aquisição da técnica, para a prática orientada por essa técnica e que isso aconteça com a certeza de que o tempo faz aparecer o resultado das boas escolhas. O ato de disparar uma flecha envolve aprender a segurar o arco, a segurar a flecha, a estirar a corda, a mirar o alvo e, finalmente, envolve o ato de decidir quando é o momento certo de soltar a corda e fazer o disparo. Tudo isso demanda muito esforço do iniciante. Na medida em que o tempo passa, o esforço vai diminuído em função dos erros e acertos, mas certamente, em razão da persistência. O arqueiro transcende, quando faz o disparo como se não tivesse que fazer nada.

Para melhorar seu desempenho na profissão, o advogado não pode adotar uma postura exclusivamente mecânica. Herriguel afirma que: “Depois de quatro anos, quando já era capaz de dominar o arco, o mestre me deu os parabéns. Eu fiquei contente e disse que já tinha chegado na metade do caminho. “Não”, respondeu o mestre. Para não cair em armadilhas traiçoeiras, é melhor considerar como metade do caminho o ponto que você atinge depois de percorrer 90% da estrada.”

A resposta é afirmativa, portanto. Qualquer aluno da faculdade de direito pode vir a se tornar um excelente e bem sucedido advogado criminalista, desde que encare com responsabilidade e paciência a tarefa da conquista da transcendência, quando saberá agir e deixar de agir, deixando as coisas seguirem o seu curso natural ou influindo da melhor forma, sempre buscando atuar de maneira espontânea e conseguindo se entregar ao momento presente de forma plena.

É indispensável, entretanto, repensar o modo como o direito é ensinado nas faculdades. [2] Vivemos tempos de alunos obcecados por concursos, de proliferação de escolas jurídicas, de professores titulados e desvalorizados, de repetição exaustiva das velhas aulas monologadas, de pactos de mediocridade entre o mestre e o aprendiz. O resultado disso tudo, não poderia ser diferente, repercute nas baixa qualidade do profissional do direito, em todas as áreas. As universidades não estão preocupadas com a formação de seres humanos melhores, mais dignos, mais confiantes, mais comprometidos, mais éticos, mais tolerantes, mais apaziguadores. O acadêmico, salvo raras exceções, está sendo preparado para acertar mais questões objetivas do que os seus concorrentes, sendo exigido um conhecimento, geralmente, a respeito de teorias jurídicas ou nomenclaturas ou posições doutrinárias completamente destituídas de qualquer contato com a realidade da vida prática. [3]

Como encarar o sofrimento do réu e de sua família, mantendo o respeito pelo sofrimento da família da vítima? Como enfrentar a fúria da imprensa? Como tomar as primeiras medidas em um flagrante? Como se cobra honorários? Quais as estratégias para manejar um pedido de soltura ou um habeas corpus? Como definir, tecnicamente, a tese de defesa? E estrategicamente? Como organizar um escritório de advocacia?

Muitos acadêmicos entraram e saíram das faculdades e outros tantos ainda sairão, sem ter enfrentado essas questões de forma adequada, ou seja, vendo como elas acontecem na prática, no cotidiano de um escritório, conversando com profissionais, participando de cursos específicos, enfim, aprendendo a arte da advocacia.

Por isso tudo, quero registrar nesse espaço o compromisso da recém criada ESCOLA DE CRIMINALISTAS com a ousadia de tentar fazer as coisas de um modo diferente, como outros ainda não fizeram, correndo todos os riscos, mas acreditando que os mesmos caminhos só nos levarão aonde outros já chegaram. Se queremos o novo, haveremos de assumir os riscos da criação, esse delito cada vez mais raro nos dias atuais. Aqui, acreditamos ser indispensável trilhar o percurso que vai do saber-conhecer ao saber-fazer, em direção ao saber-ser. Aqui o futuro é feito à mão.

Por isso tudo, perseverança é a palavra, nunca esquecendo que: “quando o arqueiro dispara a flecha, ele atinge a si próprio”.


Notas e Referências:

1- HERRIGEL, Eugen. A ARTE CAVALHEIRESCA DO ARQUEIRO ZEN. São Paulo : Ed. Pensamento, 1983.

2- Por todos, Rafael Tomaz de Oliveira: http://www.conjur.com.br/2014-out-04/diario-classe-academico-direito-protagonista-propria-formacao

3- André Karam Trindade e Alexandre Morais da Rosa, impecáveis: http://www.conjur.com.br/2015-out-17/diario-classe-preciso-separar-academia-preparacao-exame-ordem

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